Lançada em novembro de 2021, pesquisa mostra como bairros negros com menos ocorrências de uso/porte de drogas têm números de violência policial maiores que bairros de população majoritariamente branca com mais casos de uso/porte de substâncias psicoativas.
O estudo “Mesmo que me negue sou parte de você: Racialidade, territorialidade e (r)existência em Salvador”, realizado pela Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, analisa a incidência da violência em Salvador a partir de seus bairros, buscando entender o que há por trás dos territórios mais violentos da cidade, seus perfis raciais e econômicos e a promoção de estrutura públicas nestes territórios.
Para o historiador Dudu Ribeiro, co-fundador da Iniciativa Negra, “essa pesquisa evidencia que a política de segurança pública de guerra às drogas é um pretexto de um Estado racista para aprisionar, matar e controlar a população negra”. Segundo ele, “a não-promoção de políticas públicas nos territórios negros de Salvador, que são a maioria, e a promoção delas nas poucas áreas majoritariamente brancas denunciam a negação da cidadania negra, que se mostra pelo cerceamento dos direitos à cidade, à dignidade e à vida”.
O período acompanhado compreende junho de 2019 a fevereiro de 2021, em que foram monitoradas as notícias de eventos violentos na cidade a partir do banco de dados do Monitoramento da Violência, realizado pela Rede de Observatórios da Segurança e também com base em respostas da Lei de Acesso à Informação.
A Rede de Observatórios monitorou 3.040 eventos de violência, constatando que os bairros onde se identifica maior registro nas mídias de casos relacionados a violência são territórios majoritariamente negros. Dentre eles, destacam-se: São Cristóvão, Mata Escura, Sussuarana, Itapuã e Lobato. A pesquisa revela que “considerando os poucos bairros da cidade que possuem entre seus habitantes majoritariamente pessoas brancas, nenhum desses aparece de forma significativa no monitoramento das notícias”, trazendo à vista como o uso da violência se organiza na cidade. Para tanto, o estudo traz também o papel das mídias de grande circulação na capital baiana, que “distingue, sem dar nomes, os territórios criminalizados dos territórios intocáveis”, estereotipando e trazendo uma semiótica de territórios “naturalmente” violentos.
Sobre o papel dos meios de comunicação, o relatório identifica também que a cobertura midiática privilegiou notícias de ações de patrulhamento policial, sendo 801 ações de policiamento e 212 de operações policiais, mas que muito pouco foi noticiado sobre os efeitos letais destas ações.
A partir desses dados, o estudo também analisa os efeitos da guerra às drogas nos territórios de Salvador, constatando que ela se dá para determinadas pessoas e territórios. A pesquisa também chama atenção para o fato de que, da maneira que essas operações policiais se dão, elas não chegam ao fundo do problema, uma vez que os enfrentamentos acontecem nas comunidades onde a distribuição de entorpecentes é feita de forma varejista e não nos grandes centros de produção, distribuição e administração. Nesse sentido, a Iniciativa Negra aponta que a política de drogas, através da criminalização, tem como base o controle dos corpos negros.
Outro dado relevante sobre a territorialidade da guerra às drogas é que as abordagens em cada bairro são diferentes acerca do mesmo assunto e as consequências para esta questão são desproporcionais também: segundo a Secretaria de Segurança Pública da Bahia, entre janeiro e dezembro de 2020, os bairros que reúnem a Área Integrada de Segurança Pública (AISP) da região de Periperi, majoritariamente negra, registraram 79 ocorrências por uso/porte de substâncias, ao passo que o número de homicídios dolosos e violências somaram 209 registros; enquanto isso, na AISP 01 – Barris, região conhecida como “centro da cidade”, com maior concentração de pessoas brancas, foram registrados 151 casos de uso/porte de substâncias entorpecentes e, ao mesmo tempo, houve 33 casos de homicídios dolosos.
Segundo a pesquisa, estes dados comprovam que, em áreas compostas por população majoritariamente branca, o número de homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte e roubos seguidos de morte é baixo e o número de ocorrências relacionadas ao uso/porte de substâncias entorpecentes é expressivo em comparação a outros territórios onde a violência se dá de forma mais aguda. Um exemplo é o bairro de Pituba, composto por maioria branca, que tem altos índices de registros de uso/porte de substâncias entorpecentes e nenhuma morte violenta; em comparação, o Nordeste de Amaralina, território majoritariamente negro, aparece com menor número de registros de uso/porte de entorpecentes e maior número de mortes violentas.
A falta de equipamentos públicos como estratégia para criminalização de territórios negros
O estudo da Iniciativa aponta, ainda, para o agravante do acesso público a equipamentos de cidadania: no panorama geral de Salvador, apenas duas regiões contam com mais de um equipamento público de cultura: as áreas de Barris e Barra, majoritariamente brancas. Diversas áreas, onde a letalidade se mostra com números vertiginosos, não têm nenhum equipamento público.
A criação de uma política de exclusão e marginalização a partir de ações de promoção à vida e à cidadania se mostram também na saúde: a pesquisa identificou que os bairros com maior número de notícias sobre violência sofrem com baixa cobertura de equipamentos e políticas públicas voltadas à saúde.
A percepção de entrevistados ao longo da pesquisa reforçam os dados analisados no estudo sobre a conjecturação da violência como organizadora da população negra de Salvador, ao passo em que o acesso a políticas públicas de saúde, educação, cultura e educação é identificado com reticências nas narrativas. Também foram apontadas pelos entrevistados a falta de contranarrativas midiáticas e a visibilização das ações de inclusão social e promoção dos direitos humanos feitas pela própria comunidade e por movimentos sociais organizados a fim de preencher as lacunas deixadas pelo Estado.
Para Ana Míria Carinhanha, coordenadora de pesquisa da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, “ser a cidade mais negra fora do continente africano não evitou que fôssemos criminalizados e tivéssemos nossos direitos ameaçados”. “Existe uma política estatal muito clara de marginalização e extermínio dos negros e nosso objetivo é exatamente demonstrar esta realidade, tanto pelos registros de órgãos do Estado, pela semiótica construída através de notícias de veículos homogêneos, pela percepção de lideranças de bairros e coletivos e pela promoção e não-promoção de políticas públicas voltadas à qualidade de vida em determinados territórios de Salvador”.
Metodologia da pesquisa
Para realizar o estudo “Mesmo que me negue sou parte de você: Racialidade, territorialidade e (r)existência em Salvador” a Iniciativa Negra utilizou metodologias qualitativa e quantitativa, coletando informações em parceria com a Rede de Observatórios da Segurança e através de pedidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), coleta de dados abertos e consulta a relatórios oficiais, além de entrevistas com lideranças de bairros.
Para a análise e identificação dos bairros com mais notícias de eventos violentos em Salvador, a pesquisa se baseou no Monitoramento da Violência, realizado pela Rede de Observatórios da Segurança. As notícias publicadas pela mídia foram qualificadas para análise e comparação com levantamentos abertos das instituições públicas de segurança e outras áreas de gestão governamental.
Foram também entrevistadas 13 pessoas, entre 13 de maio e 9 de setembro de 2020, sendo 9 mulheres e 4 homens que atuam com associações, movimentos sociais, coletivos na cidade e são reconhecidas como lideranças nas localidades onde aparecem de forma mais recorrente registros de violência. A Iniciativa Negra assumiu o compromisso sobre o uso das informações colhidas e a responsabilidade pelo sigilo delas, visando manter o anonimato e respeitando as decisões dos participantes.