Iniciativa Negra
Luciano Góes em entrevista para o minidocumentário da pesquisa 'Do descrédito ao desmonte'.

Sobre as prisões: “estamos falando de lugares racializados, por isso eles são naturalizados”

Artigo
07/07/22
Compartilhar

Luciano Goés traz panorama histórico sobre o punitivismo e como isso tem impactado pessoas negras

Em paralelo ao lançamento da pesquisa “Do descrédito ao desmonte: aplicação de alternativas penais e enfrentamento ao uso abusivo de prisões provisórias em Salvador”, realizada pela Iniciativa Negra, com o apoio do Fundo Brasil, nossa equipe conversou com personalidades ligadas ao sistema de justiça da Bahia e a setores que dialogam com a aplicação das medidas alternativas em Salvador para a produção do minidocumentário homônimo da pesquisa. O minidocumentário está disponível no canal do YouTube Iniciativa Negra.

O primeiro entrevistado que trazemos é Luciano Goés, advogado abolicionista, professor, doutorando em Direito pela Universidade de Brasília. Luciano iniciou seu ativismo em prol da população negra antes de adentrar na universidade e desde 2012 pesquisa criminologia numa perspectiva antirracista e abolicionista penal.

Confira os destaques da entrevista:

INICIATIVA NEGRA: De acordo com dados da Secretaria de Administração Penitenciária – SEAP, praticamente metade das pessoas presas na Bahia estão em caráter provisório, aguardando julgamento. O que você pensa sobre esse cenário?

LUCIANO GOÉS: Então a prisão cautelar, prisão provisória, prisão preventiva, que vai substituir normalmente a prisão em flagrante, ela deveria ser a última medida, quando não houvesse nenhuma outra possibilidade que efetivasse ao desenvolver normal do processo penal. Nós temos outras medidas, inclusive restritivas de direito, que não o cerceamento da liberdade.

As audiências de custódia também vêm nesse sentido. Ela surge no ordenamento brasileiro para colocar a prisão como última opção do Estado. Mas o que acontece no nosso contexto é o contrário. Porque quando nós falamos em prisão nós estamos falando de uma seletividade racial de um lugar naturalizado para o povo negro.

Então essas medidas cautelares alternativas à prisão elas acabam sendo afastadas, excluídas do rol das opções da magistratura brasileira, porque aqui o lugar de desumanização, já é um lugar devido, um lugar natural, é o lugar exato da população negra brasileira. Então, é uma facilidade em decretar a prisão como única medida possível para corpos negros, e a quantidade de prisões provisórias, prisões preventivas e temporárias que nós temos no nosso sistema, que chegam a ultrapassar quarenta por cento, quase a metade das pessoas que nós temos no Brasil.

IN: Segundo dados levantados pela Defensoria Pública da Bahia, 98% das pessoas presas em flagrante são pessoas negras e cerca de 95% dos flagrantes saíram com algum tipo de restrição à liberdade. Como você considera a possibilidade de alternativas penais à prisão como ferramenta de reduzir o uso abusivo de prisões provisórias, levando em conta que majoritariamente o público acusado é constituído por jovens-homens-negros em vulnerabilidade socioeconômica?

LG: No pós abolição, no nosso Código Penal, de 1890, a prisão surge como instrumento oficial a sanção oficial e principal do Estado. Só que, a partir disso, nesse contexto de cerceamento, de regular a liberdade concedida ao povo negro com uma falsa abolição, a prisão também tem a função de reformular, de reorganizar as senzala.

Então estamos falando de lugares racializados, por isso eles são naturalizados, por isso toda essa facilidade de encarcerar os homens negros, por exemplo, nas audiência de custódia, na prisão em flagrante, essa conversão quase automática da prisão em flagrante para prisão preventiva, que é uma prisão que não tem prazo definido, …é na verdade, é uma antecipação da condenação. Por exemplo, a nossa política de drogas, chamada de guerra às drogas, não é uma guerra contra as drogas, é uma guerra racista, e  que  no Brasil sempre sempre teve um viés anti negro.

Quem tem o direito de responder em liberdade? Quem tem um direito fundamental da presunção de inocência e quem não tem o mínimo desse direito, desse rol de garantias condicionais? Porque o corpo negro no Brasil, na verdade tem uma presunção de periculosidade. Isso, em relação aos homens negros fica muito evidente quando se trata de prisões provisórias.

IN: De acordo com dados fornecidos pela SEAP, atualmente 13.057 pessoas estão presas na Bahia. Destas, 9.004 estão presas por crimes relacionados à Lei de Drogas (11.343/2006). Como você percebe a aplicação de alternativas penais nos casos relacionados aos crimes da Lei de Drogas?

LG: Quando se fala de lei de Drogas no Brasil, nós temos que falar do estereótipo construído. A criminologia construiu a imagem de alguns corpos que são considerados criminosos naturais e quando a gente olha o histórico da nossa política de drogas no Brasil, ela já aparece, por exemplo, no combate ao povo negro, aparece já em relação ao Palmares, aparece em relação  a crescente preocupação da branquitude brasileira em relação à  liberdade negra, a abolição da escravidão. Então, isso tudo vai trazer para a gente, principalmente no pós abolição, com o aparato da ciência, da ciência branca, vai fazer com que essa relação com as drogas seja considerada como uma potencialidade a periculosidade daqueles corpos.

E hoje quando a gente trata da nossa política de drogas, na nossa Lei 11. 343, nós temos algo muito específico, que é a distinção entre usuário e traficante. A distinção se faz por questões subjetivas, nessas questões subjetivas o racismo vai programar quem é o melhor, quem deve ser considerado usuário e quem deve ser considerado como traficante. O povo negro mesmo preso com uma quantidade de substância considerada ilícita em uma pequena quantidade de pequeno valor, ele vai ser facilmente reconhecido como traficante e a palavra dos policiais, veem muito nesse sentido. 

O corpo negro ele vai ser considerado como traficante, mesmo na suspeita ele vai ser preso. Então, de novo, aquela presunção de inocência vai ser afastada em prol da segurança da ordem pública. Em vários discursos nesse sentido, de novo aparecem essa exclusão das medidas alternativas à prisão nessas audiências de custódia dos corpos negros.

Homens e mulheres negros poderiam facilmente responder processo em liberdade. Poderiam usar as tornozeleiras eletrônicas, poderiam até mesmo ter a restrição de liberdade em determinados horários…A prisão aparece como principal instrumento de controle. Então, nós não temos como pensar em possibilidades, em alternativas à prisão se nós não pensarmos,  e se, antes de tudo, a branquitude não pensar na sua ideologia racista.

IN: Para você, quais são os desafios ainda presentes para aplicação das alternativas penais à prisão junto ao poder legislativo e judiciário?

LG: A prisão funciona na nossa sociedade porque ela funciona em uma sociedade que é pensada a partir da exclusão, da desumanização.

E aí, quando a gente pensa, por exemplo, em crimes raciais cometidos por pessoas brancas, a gente vê como o abolicionismo já existe. não é utopia, o abolicionismo penal existe. Ele não existe para nós, corpos negros, em que a prisão vai ser esse lugar de naturalização, esse lugar natural, mais para que os mesmos, não existe.

Quando nós tentamos fazer com que uma pessoa  branca seja responsabilizada por um crime racial, fica só na tentativa mesmo. o sistema de justiça ou o sistema de injustiça racial brasileiro vai se mobilizar de uma maneira sistemática a imunizar a branquitude, e a gente consegue ver o que a professora Cida Bento chama de pacto narcísico da branquitude, a estrutura ela vai se mobilizar a mostrar como a prisão não era lugar para aquele corpo.

A ausência de segurança, a superlotação, o lugar degradante, tudo isso aparece nesse momento, para a branquitude surge a possibilidade de outra chance, a fácil condição do uso de tornozeleira eletrônica, da prisão domiciliar.   As medidas alternativas existem, para o corpo negro não.

A branquitude tem a vontade e o poder de determinar os locais que os corpos ficam. Ai mantêm a nossa geopolítica mais básica, casa grande x senzala. O Brasil é uma grande casa branca e senzala.

Compartilhar