Iniciativa Negra
Antônio Faiçal em entrevista no minidocumentário da pesquisa 'Do descrédito ao desmonte'

Do descrédito ao desmonte: aplicação de alternativas penais e enfrentamento ao uso abusivo de prisões provisórias em Salvador

Adriele do Carmo
Artigo
08/07/22
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Em paralelo ao lançamento da pesquisa Do descrédito ao desmonte: aplicação de alternativas penais e enfrentamento ao uso abusivo de prisões provisórias em Salvador, realizada pela Iniciativa Negra com o apoio do Fundo Brasil, foram feitas 5 entrevistas com personalidades ligadas ao sistema de justiça da Bahia e a setores que dialogam com a aplicação das medidas alternativas em Salvador para a produção do minidocumentário homônimo da pesquisa. 

O minidocumentário  está disponível  no canal do YouTube Iniciativa Negra.

O segundo entrevistado que trazemos é o Dr. Antônio Faiçal.

Antônio Faiçal é juiz de Direito há vinte anos no Tribunal de Justiça da Bahia. O magistrado é coordenador do Grupo de monitoramento e fiscalização do sistema e juiz auxiliar do Conselho Nacional de Justiça. 

Confira os destaques da entrevista:

O que são medidas alternativas à prisão?

Antônio Faiçal: Nós temos duas formas de aplicação das medidas alternativas à prisão: a primeira é aquela que serve como uma alternativa à prisão para aquelas pessoas que ainda estão respondendo processo criminal. Então, são pessoas que são soltas com algumas condições para que aguardem o julgamento do processo não privadas de liberdade e tem as penas alternativas, que são aquelas pessoas que já foram julgadas, já foram sentenciadas, mas, pelas circunstâncias do crime, pela quantidade de pena aplicada a elas, é dada a possibilidade de cumprimento dessa pena não privados de liberdade, mas com algumas penas que chamamos de substitutivas, porque elas substituiriam a prisão de forma que a prisão nesses casos seria a última razão e recurso. Elas iriam para a prisão caso descumprissem a pena alternativa que lhes foi imposta.

Segundo dados fornecidos pela SEAP, atualmente 13.057 pessoas estão presas na Bahia. Destas, 9.004 estão presas por crimes relacionados à Lei de Drogas (11.343/2006). Como você percebe a aplicação de alternativas penais nos casos relacionados aos crimes da Lei de Drogas?

AF: Eu não tenho dúvida hoje de que esse é o grande público do nosso sistema prisional (pessoas enquadradas na Lei de drogas), mas não posso afirmar que seja nesse percentual todo que se posicionou muito. Sinceramente, eu acho que não chega a isso tudo, mas vamos lidar com esse número como realidade,  um pouco menos que isso, sem dúvida nenhuma…Isso revela que possivelmente o nosso Estado brasileiro está com uma uma uma estratégia equivocada de combate à criminalidade. Pensa bem que não é uma equação que se fecha o que a gente tem percebido ultimamente a polícia prendendo como nunca, o Judiciário fazendo o seu trabalho, a gente tem que entregar a jurisdição.

E muitas vezes isso termina em muitas condenações e a população prisional brasileira vem crescendo assustadoramente na última década. Em contrapartida, isso daí que eu digo que é um paradoxo, nós não temos o aumento da segurança pública, não temos um aumento da sensação de segurança, dando a entender que só aprender por si só não tem resolvido o nosso problema.

Daí vem a necessidade de a gente tentar criar uma política de enfrentamento ao tráfico de entorpecentes talvez um pouco diferente. Eu não tenho a solução para esse problema, mas precisa ser debatido. Precisa ser trazido à tona pelo Poder Judiciário, pelo Poder Legislativo e, principalmente, pelo Poder Executivo.

Precisamos nos basear em números para tentar discernir qual a melhor estratégia para o combate às drogas no nosso país, do jeito como está sendo feito, aparentemente não tem resolvido muita coisa.

Ainda com relação às alternativas penais à prisão, qual é o espaço da atividade do juiz em aplicar os requisitos que estão na lei? Segundo o Conselho Nacional de Justiça, 62% dos magistrados são homens e 80% são brancos. Você acredita que isso interfira na aplicação de alternativas à prisão?

AF: Dissecando sua pergunta em duas, nós temos requisitos legais para aplicação das cautelares alternativas à prisão, então isso leva em conta o tipo de crime que é trazido à julgamento, os antecedentes daquela pessoa, se ela já teve prisões anteriores ou não, estão. Tem uma série de requisitos que precisam ser encaixados para a pessoa ter a possibilidade de ser solta e responder o processo em liberdade, podendo ou não cumprir uma cautelar alternativa à prisão. Existe a soltura plena, existe a soltura sem condições, mas muitas vezes o que a gente tem visto é a aplicação das cautelares.

Nesse contexto, eu queria esclarecer aqui que existe sim um espectro de discricionariedade do juiz. Então a pessoa preenche alguns requisitos para o cargo. Estamos ali numa zona nebulosa, juiz pode aplicar ou não a cautelar. O que eu acho que faz diferença na possibilidade de aplicação é a qualidade da fiscalização desta cautelar. Então, se eu, como magistrado, tenho uma cautelar que vai ser bem fiscalizada, se eu tenho certeza que eu vou ter um grupo multidisciplinar que vai acompanhar aquela pessoa que foi solta para que ela cumpra as cautelares e, principalmente, para que ela (pessoas que está respondendo o processo) seja conduzida para perceber que existe uma vida fora do crime e, com isso, ela não volte a delinquir. Eu acho que a cautelar cumpre seu papel. 

Então, a cautelar não seria só pura e simplesmente uma alternativa à prisão, mas uma alternativa que faria com que aquela pessoa fosse trabalhada, durante algum período, por profissionais competentes que nem fazem parte do Judiciário. E esse é um serviço normalmente prestado pelo Poder Executivo, por psicólogos, por assistentes sociais, por pessoas que têm formação para a ajuda, para uma tentativa de demonstração de uma nova vida para aquele cidadão.

E a ideia nossa é que com isso ele não volte a delinquir. Não volte a engrossar as fileiras do sistema de Justiça Criminal. Então, a cautelar, ela teria esse papel de diminuir a reincidência, mostrando para aquela pessoa que a vida pode ser diferente se ela não se envolver mais com o crime. 

Agora sobre a  outra pergunta que fala do perfil do Judiciário:  Isso tem muita relação na minha forma de ver,  com acesso à educação de qualidade, que naturalmente acaba selecionando pessoas mais bem formadas, que tiveram mais oportunidades da vida acender em cargos mais difíceis para quem não teve o privilégio de uma educação tão boa e, naturalmente, acaba havendo uma formação de um judiciário mais branco por conta do déficit enorme. Essa dívida gigantesca que o nosso país tem com a população negra, que nunca teve acesso a uma boa educação, que vive alijada.

Via de regra, boas escolas, boas oportunidades. Então eu acho que a formação do Judiciário é muito mais uma consequência da nossa história perversa com aqueles que ostentam a pele negra do que dizer que é um poder discriminador. Então, a forma de entrada no Judiciário é objetiva, são provas que medem conhecimento. Não é uma entrada discriminatória. Mas talvez ela ela se torne elitista em algum momento por conta da nossa base deficitária de qualidade de educação para os negros.

Lembrando, porém, contudo, que essa essa história, esse jogo, me parece estar no ponto de virada. Aqui mesmo, no Tribunal da Bahia nós temos cotas para negros nos concursos para juízes. O último inclusive já respeitou isso. Então, de certa forma, nós vamos acabar equilibrando esse jogo em poucos anos. O que eu acho muito saudável para todos.

Para você, quais são os desafios ainda presentes para aplicação das alternativas penais à prisão junto ao Poder Legislativo e Judiciário?

AF: Eu acho que, nesse contexto, o Legislativo, de certa forma, até já fez o papel dele. ele fez prever, na legislação, que as cautelares são medidas possíveis de serem aplicadas pelo Judiciário.

Talvez o que precisamos agora é de um esforço maior do Poder Executivo, porque, como eu já disse logo no começo, o serviço que acompanha o cumprimento das medidas cautelares, via de regra, é promovido pelo Poder Executivo. Nós temos aqui em Salvador uma Central integrada de Alternativa Penal, toda pessoa presa em flagrante que o juiz decide colocá-la em liberdade com cautelares são acompanhadas por esse serviço do Poder Executivo, e elas têm um poder importantíssimo, porque o juiz se sente muito mais confortável em aplicar uma cautelar, em vez de mandar a pessoa presa se ele souber que  aquela cautelar é bem fiscalizada, bem acompanhada, então é uma alternativa viável.

O nosso grande desafio com o Poder Executivo é conseguir ampliar esse serviço para todo o Estado e para todo o país, essa inclusive é uma bandeira do Conselho Nacional de Justiça, do Programa Corra para o Abraço, do Departamento de Monitoramento e Fiscalização, do Sistema Carcerário, etc.

O que você sugeriria como uma boa estratégia para estimular no judiciário a aplicação das alternativas penais à prisão?

AF: Eu acho que é justamente a resposta anterior, se a cada pequena ou grande comarca deste país nós tivéssemos uma Central integrada (Central Integrada de ALternativas Penais – CIAP) robusta, que funcionasse com eficiência, que conseguisse acompanhar aquela pessoa, que conseguisse recriar vínculos familiares dela, que conseguisse fazer com que a pessoa que está em situação de uso abusivo de droga conseguisse administrar o uso dessa droga, se reorganizar enquanto cidadão, muitos desses parariam de delinquir, então a ideia das centrais robustas eu acho que é o grande o pulo do gato. 

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