Iniciativa Negra
Marta Rodrigues em entrevista no minidocumentário da pesquisa 'Do descrédito ao desmonte'

“O povo negro tá cansado da chicotada, da prisão, da violência, da maldade. Esse modelo perverso escravista ainda é  forte e permanece na Justiça”  

Artigo
15/07/22
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Marta Rodrigues, vereadora de Salvador, participa de entrevista sobre a pesquisa ‘Do descrédito ao desmonte’ e fala sobre o racismo e sistema de justiça

Em paralelo ao lançamento da pesquisa “Do descrédito ao desmonte: aplicação de alternativas penais e enfrentamento ao uso abusivo de prisões provisórias em Salvador”, realizada pela Iniciativa Negra, com o apoio do Fundo Brasil, nossa equipe conversou com personalidades ligadas ao sistema de justiça da Bahia e a setores que dialogam com a aplicação das medidas alternativas em Salvador para a produção do minidocumentário homônimo da pesquisa. O minidocumentário está disponível no canal do YouTube Iniciativa Negra.

A  terceira entrevistada que trazemos é a professora e vereadora Marta Rodrigues.

Vereadora de Salvador pelo 3º mandato, Marta Rodrigues é presidenta da Comissão de Direitos Humanos e de Finanças da Câmara Municipal de Salvador.

Confira os destaques da entrevista:

Iniciativa Negra: De acordo com dados da SEAP, praticamente metade das pessoas presas na Bahia estão em caráter provisório, aguardando julgamento. O que você pensa sobre esse cenário?

Marta Rodrigues: Considero esse debate  fundamental e não tem como a gente não chegar ao governo e cobrar saídas. Quem são essas pessoas que estão encarceradas e porque ainda nesse caráter provisório? Isso é muito grave. São as pessoas pretas, pobres, periféricas.

Então, eu também tenho esta preocupação. Eu acho que quando a Iniciativa Negra apresenta para a gente essa pesquisa, está nos convocando para que nós possamos, chegar junto no Judiciário, e encontrar saídas, e eu acredito que essas saídas precisam ser coletivas.

Para a gente pensar em uma nova política [sobre justiça criminal], vai passar pelo Poder Legislativo. Então, nós não queremos o poder desses espaços pelo poder, nós queremos o poder coletivo, que seja um instrumento do empoderamento e da luta. E, esta pauta que a iniciativa apresenta para a gente, tem que estar como prioridade em qualquer uma outra ação que a gente venha desenvolver, seja no município, seja do Estado ou da União.

IN: As taxas de encarceramento no Brasil cresceram muito nas últimas décadas e, tanto as pesquisas realizadas pela Iniciativa Negra quanto as realizadas por outras organizações têm apontado o papel que a Lei de Drogas teve nesse aumento do encarceramento, sobretudo a partir do artigo 33 da Lei de Drogas, que define o crime de tráfico de drogas. Como você avalia a aplicação da política de drogas no Brasil? 

MR: Em nosso país é urgente, tem que alterar esta lei porque se continuar como está, a tendência é ir aumentando gradativamente este número, e não é só um número, são pessoas, são famílias e isso tem impacto na sociedade como um todo, tem que discutir também o impacto coletivo que isso causa. 

A gente precisa ter essa quantidade de substância considerada como tráfico bem definida. Como não tem ainda essa política de forma bem definida regulamentada o que é que a gente vê? São prisões arbitrárias também. Para uns a prisão, para outro não é da mesma forma. Então a gente precisa trazer essa revisão. 

Precisamos construir uma lei dialogando, escutando os movimentos, porque nenhuma casa legislativa, nenhum parlamentar tem condições de estar elaborando uma política com a dimensão como essa, que a gente sabe a quem atinge diretamente, no formato só de dentro para fora. A pauta tem que vir de fora para dentro da casa porque não tem mais como ver os números crescendo. Porque a gente percebe, também, tanto mais nas prisões, o número alto de pessoas encarceradas, e isso é fruto de toda essa falta de prioridade em fazer uma lei que atenda também a demanda da sociedade, porque, caso contrário, nós vamos estar vendo nossos jovens sendo cada vez mais encarcerados. Isso é de uma violência tamanha!

IN: Segundo a Defensoria Pública da Bahia, 98% das pessoas que foram presas em flagrante em 2020 foram pessoas negras, e no Estado da Bahia são atualmente mais de 13 mil pessoas que estão presas. Dentro desse universo, mais de 9 mil são justamente por crimes ligados à lei de Drogas. De um outro lado,  o Conselho Nacional de Justiça aponta que, no Brasil, 62%  dos juízes são homens e 80% são brancos. Para você essa diferença racial entre o perfil das pessoas que estão presas e serão condenadas e o perfil das pessoas que estão julgando interfere na aplicação de alternativas penais à prisão?

MR: O povo negro tá cansado  da chicotada, da prisão, da violência, da maldade. Esse modelo perverso escravista ainda é forte e permanece na Justiça. E, quando a gente encontra advogados, juízes, promotores, defensores, ainda tem um número bem pequeno de negras e de negros, isso nos deixa com esperança muito valiosa. 

Pois a branquitude é privilegiada. Quem toda a vida estudou em escola particular, não sabe o que é uma escola pública, não conhece a realidade que a população negra enfrenta. Achar que o julgar, condenar, jogar lá na prisão, que isso vai resolver. E não vai resolver. As pesquisas já mostraram para a gente. 

IN: Marta, você tem uma atuação em prol da educação enquanto vereadora. O que você sugeriria como uma boa estratégia para estimular no judiciário a aplicação das alternativas penais à prisão?

MR: Sugeriria para o Judiciário a escuta, a este chamado da Iniciativa Negra, chamando também os movimentos, porque os movimentos têm suas estratégias e sabe como está buscando e de que forma nós vamos conseguir reverter essa realidade.

Então se o Judiciário também faz isso aí, quem sabe não vai mudar? E vai mudar muito, porque não vai só simplesmente para essa condenação, não. Nós estamos aqui no nosso lugar privilegiado. Nós temos condições então, só o fato de passar no concurso. E está ali que validar o direito de você condenar sem você lá dentro dessa realidade que está bem pertinho de você.

Se não, a gente vai ter uma justiça cada vez mais seletiva e punitiva. Para a gente, não vai resolver essa situação porque as pessoas querem também um outro olhar não é um olhar que criminaliza você a partir desse lugar que você está. Então é isso que o Judiciário tem. Eu penso que tem que sair desse lugar, tirar um pouco sua toga, dizer que está aqui. Dizer: “agora eu vou sentar aqui para a gente promover essa justiça.”

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