Iniciativa Negra
Políticas de guerra e táticas de combate têm ampliado os maus tratos e a tortura no Brasil. 26 de Julho Dia do Combate à tortura.

Políticas de guerra e táticas de combate tem ampliado os maus tratos e a tortura no Brasil

Por Amanda Caroline A. P. Rodrigues
Artigo
26/07/22
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A data de 26 de julho é conhecida como o Dia da Prevenção e Combate à Tortura no Brasil e seu intuito é tornar pública a violência, os maus tratos e a tortura que milhares de brasileiros/as/es, principalmente jovens, negros, das camadas sociais mais pobres e pertencentes a territórios de periferias e favelas, estão a sofrer diariamente na sociedade pela segurança pública e o sistema penal brasileiro. Além disso, essa data contribui para propagar a luta de defensores dos direitos humanos no combate e redução às diversas violações de direitos, violências e tragédias sociais em evidência no país. 

Quando se fala em tortura, as primeiras imagens que se vem na cabeça são memórias relacionadas ao período da ditadura militar no Brasil, ou ainda, à época da colonização e do sistema escravocrata institucionalizado na formação da sociedade, no entanto, mesmo após décadas desses acontecimentos, as práticas de maus tratos e tortura nunca foram abandonadas, nem erradicadas, principalmente pelas instituições e agentes da segurança pública e o sistema penal brasileiro.

A atual Lei de Drogas nº 11.343/2006 e a justiça criminal não são capazes de combater o uso e comércio de drogas, nem estabelecer segurança e o desenvolvimento social do Brasil, pelo contrário, sustenta uma política bélica e repressiva e uma atuação arbitrária das forças policiais. Legitimando intervenções militares em territórios ocupados majoritariamente por pessoas, famílias e comunidades negras, fomentando altos índices de violações de direitos, violência, letalidade e encarceramento em massa, impondo pessoas em conflito com a justiça criminal à um sofrimento físico e mental e à penas cruéis, desumanas e degradantes. 

Na teoria, a política de drogas visa combater o uso e comércio de drogas, contudo, na prática, constrói uma política proibicionista e punitivista que criminaliza pessoas por estereótipos sociais, assim, retroalimentando uma engrenagem e uma estrutura penal obsoletas (como defende Angela Davis em ‘Estarão as prisões obsoletas?’) que tem como efeitos a “Guerra às Drogas”.

Ao buscarmos informações a respeito dos investimentos públicos que são realizados em torno do bem estar social e da redução dessas violências e desigualdades sócio-raciais, o orçamento público aponta para um fortalecimento das forças policiais na aquisição de materiais e equipamentos táticos de combate e guerra.

Na pesquisaRacismo e Gestão Pública: custos da política de drogas na Cracolândia”, publicada em 2021 pela Iniciativa Negra, foi observado que a performance de resultados de um trabalho de policiamento ostensivo é normalmente calculada em ações de punitivismo e encarceramento, ao invés de ações de prevenção. Portanto, a noção de produtividade do trabalho policial ostensivo pode ser percebida a partir da análise orçamentária dos gastos com compras de materiais destinados às forças policiais. Segundo essa pesquisa realizada na cidade de São Paulo, os gastos com equipamentos táticos de combate e armas e munições entre 2017 e abril de 2020 representam o primeiro e segundo maiores gastos da Guarda Civil Municipal de São Paulo, juntos, eles compõem 42% dos gastos totais de compras de materiais do principal órgão responsável pela política de segurança urbana no município.

Isto significa que, esse montante de investimentos em armamentos menos letais chama atenção, pois indica a priorização que o poder público tem dado a ações de repressão e violência e encarceramento em massa, em detrimento à prevenção e garantia de direitos. Por isso, é importante que os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil conduzam pesquisas em outros estados e municípios para apurar o planejamento orçamentário das suas cidades e intervir na administração pública a partir do controle social nas políticas de segurança pública, saúde, assistência social, educação, economia, habitação, cultura, lazer e preservação da memória. 

O encarceramento em massa, por sua vez, produz consequências catastróficas, impondo indivíduos a um processo de desumanização e dessocialização gerado pelo cárcere¹ e tende a recair com frequência sobre pessoas, famílias, territórios e comunidades negras, as quais são alvos prioritários da atual política de drogas. 

Atualmente, existem 917.092 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil, desse total, 45% ainda não receberam sentença, caso tivessem sido julgados, talvez não fossem privados de liberdade, dessa maneira, o país se mantém como o 3° país que mais encarcera no mundo em números absolutos. Outro ponto importante é que segundo os dados de até dezembro de 2018 do Sisdepen publicado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), 67% das pessoas encarceradas se declaram negras, em um outro relatório, publicado no mesmo ano pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os dados apontam que ao menos 1/3 dos brasileiros estão encarcerados por crimes de drogas.

Como exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) já declarou, através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 347/2015, o Estado de Coisas Inconstitucional sobre o encarceramento no Brasil e a necessidade de intervenção sob as violências e violações de direitos que ocorrem no cárcere. Por meio dos movimentos sociais, organizações da sociedade civil e familiares e amigos/as/es de pessoas presas, diversas denúncias são realizadas por intermédio da Defensoria Pública e outros órgãos públicos durante inspeções e visitas aos presídios, as quais apontam situações como: distribuição de alimentos apodrecidos ou com cacos de vidro destinados à sua nutrição; o racionamento de água e de banhos de sol; a falta de produtos de higiene básica; a suspensão de visitas; revistas vexatórias; entre tantas outras inconstitucionalidades no sistema, causando um sofrimento físico e mental generalizado. 

O aumento exponencial da taxa de aprisionamento, consequentemente, gera uma superlotação na maioria dos presídios brasileiros. Segundo o relatório Sistema Prisional em Números do Conselho Nacional do Ministério Público, no terceiro trimestre de 2019, a taxa de superlotação no Brasil estava em 161,39%. Essa superlotação favorece a insalubridade e proliferação de doenças imunossupressoras e infectocontagiosas – preexistentes ou adquiridas após o aprisionamento –  no ambiente do cárcere, somado a ausência e insuficiência de um atendimento médico e tratamento medicamentoso e de uma assistência psicossocial, a probabilidade de adoecimento e morte dentro do sistema penitenciário são assim ampliadas, resgatando memórias históricas e coloniais de aprisionamento, violência, adoecimento e morte.

Sendo assim, ser sujeito negro no Brasil é estar, cotidianamente, muito mais exposto a situações de maus tratos, violências e tortura, além da criminalização e policiamento ostensivo impostos a trajetória de vida deste indivíduo.

Em 2013, foi implementado no país, a Lei nº 12.847, que institui o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e prevê a criação de Mecanismos e Comitês em territórios estaduais e municipais que sejam compostos por órgãos, comissões, defensorias públicas, conselhos, bem como, organizações não governamentais e da sociedade civil nas inspeções e ações para diminuir os maus tratos e a tortura nos presídios brasileiros. Contudo, conforme o relatório de 2020-2021 do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), após quase uma década da promulgação da lei, os Mecanismos e Comitês não foram implementados em 37% dos estados brasileiros². Além disso, nos estados que possuem Mecanismos e Comitês, há disparidades entre a participação da sociedade civil e órgãos públicos e a ausência de uma estrutura capaz de garantir o material e pessoal para atuação da equipe de prevenção e combate à tortura nos estados e municípios. 

A violência, a grave ameaça à vida e o processo de desumanização e dessocialização que a atual política de drogas e a privação de liberdade impõem às pessoas, famílias e comunidades negras geram calamidades públicas na sociedade brasileira, porém não são fatos identificadas como crimes de tortura pelo Estado, para isso, é preciso que as instituições e os agentes da segurança pública, da justiça criminal e do sistema penal confessem a destruição social causada e assumam que houve um retrocesso das políticas de prevenção e combate à tortura no Brasil nas últimas décadas, bem como, o aumento da violência e o tratamento penal cruel e degradante, enquanto fomenta-se políticas de combate e guerra, de militarização das forças policiais e do encarceramento em massa.

A implementação de Mecanismos e Comitês de Prevenção e Combate à Tortura é um movimento extremamente importante e urgente como avanço da segurança e desenvolvimento social do país, além da mudança de paradigmas no planejamento orçamentário das cidades para que seja possível o controle social das instituições e agentes da segurança pública e do sistema penal. Com isso, investir em políticas de alternativas penais, saúde, assistência social, moradia, renda, educação, lazer, cultura e preservação da memória que abordem e considerem as consequências do racismo, punitivismo, política de drogas repressiva e encarceramento em massa de populações, em sua maioria, negras, a fim de romper com diferentes ciclos de guerra, tortura, violência e morte são essenciais na luta por acesso universal à direitos e na prevenção e combate à tortura. 

Notas de rodapé 

  1. Isto significa que o Estado brasileiro e o sistema de justiça criminal aprisionam o sujeito o abstraem da sua identidade e pertencimento ao seu território, desumaniza-o e ao contrário da esperada ressocialização, constrói uma dessocialização deste sujeito. Ao sobreviver ao cárcere, este indivíduo está sujeito aos impactos das injustiças criminais e desigualdades sociais na vida pós cárcere até a sua morte. Para saber mais, veja a pesquisa publicada pela Iniciativa Negra em 2021 “A liberdade é uma luta constante: efeitos e permanências do cárcere na vida de egressos e familiares pós-prisão na cidade de São Paulo”. Disponível em: <https://iniciativanegra.org.br/iniciativa-negra-lanca-pesquisa-apontando-efeitos-e-permanencias-do-carcere-na-vida-de-egressos-e-familiares-pos-prisao-na-cidade-de-sao-paulo/>
  2.  Os mecanismos e comitês foram implementados em apenas 17 estados, enquanto 9 estados e o Distrito Federal ainda não possuem nenhum dos dois previstos na Lei nº 12.847/2013. Relatório Anual 2020-2021, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Disponível em: <https://mnpctbrasil.wordpress.com/relatorios/>.
    Acesso em 19 de julho de 2022.
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