Iniciativa Negra

Carta de Salvador por Direitos, Reparação e Justiça

Artigo
13/12/23
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A Conferência Internacional Iniciativa Negra por Direitos, Reparação e Justiça, reuniu, entre os dias 5 e 7 de dezembro, na Biblioteca Central do Estado da Bahia, em Salvador, pesquisadoras, pesquisadores, ativistas e especialistas nos debates sobre segurança pública, racismo e a política de drogas nas américas e no mundo, pela perspectiva sul global.

O evento foi realizado pela Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas e contou com o apoio do Fundo Baobá, Instituto Ibirapitanga, Open Society Foundations, Oak Foundation, Fundação Friedrich Ebert – Brasil, Companhia das Letras, Revista Quatro cinco um, Fundação Pedro Calmon e Governo do Estado da Bahia.

No encerramento da programação, os debates propostos contribuíram para a produção de uma carta final, denominada “Salvador por Direitos, Reparação e Justiça”, que tem por objetivo colaborar com a construção nacional e internacional de uma pauta da reforma da política de drogas a partir da reparação dos danos causados pela guerra às drogas.

O manifesto, que reuniu propostas e considerações feitas de forma coletiva, elencou cinco eixos fundamentais em defesa da vida, garantia de dignidade e promoção da paz: Outro modelo de segurança; justiça reprodutiva; reparação e reconciliação; autocuidado radical e comunicação de causas.

Baixe a “Carta de Salvador por Direitos, Reparação e Justiça” nos links abaixo

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Salvador, 07 de dezembro de 2023

Carta de Salvador por Direitos, Reparação e Justiça

Pedimos licença ao território e saudamos essa casa chamada Salvador-Bahia.

Desde 2015, a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre drogas vem sinalizando que a Guerra às drogas não é uma guerra contra substâncias, mas sim contra determinadas pessoas e territórios, que tem uma coisa em comum: a cor preta da pele. A mesma pele que é alvo da segurança pública do estado, alvo também dos efeitos de uma guerra que afeta o acesso a direitos, à justiça e que se nega a reparar os danos causados às pessoas e seus territórios. Não que alguns danos sejam reparáveis, olhe ao lado, vejam as Mães de Maio, e tantas outras mães que engolem o choro à seco e fazem do luto Luta pelos sobreviventes do cárcere, familiares encarcerados, vítimas da violência do Estado e desaparecidos forçados. 

Os impactos dessa guerra são imensuráveis. Quem ganha e quem perde com isso? A associação entre brutalidade policial e ações de repressão em governos neoliberais ou progressistas virou um ponto de encontro! Mas sabemos quais são os corpos afetados. Por isso, nos reunimos aqui, na cidade de Salvador, nesta II Conferência Internacional Iniciativa Negra por Direitos, Reparação e Justiça. 

Nós, pessoas negras, populações em situação de rua, mulheres negras cis, trans e travestis, homens negros cis, trans, transmasculinos e não-binaries, e quilombolas, comunidades indígenas e ribeirinhas, povos do campo e da floresta,  e corpos racializados, estamos aqui. Nós, trabalhadores da saúde, empreendedores canábicos, pesquisadores, ativistas e militantes de movimentos sociais, povo da rua, de terreiro e das mais diversas expressões religiosas, mães, pais, irmãos e irmãs, filhos, filhas e familiares, estamos aqui. Nós, impactos por essa guerra e por uma política que é eixo do capitalismo contemporâneo estruturado de forma global, estamos aqui. 

Nós enfrentamos no cotidiano projetos de marginalização e de extermínio de nossas vidas. Nós, feministas negras, decoloniais, abolicionistas penais e intensamente radicais que lutamos por uma vida de bem-viver estamos aqui. Nós não recuaremos. Nós intensificaremos rede, encontro, formulação e ação política a partir do sul global para que o compromisso em defesa da vida, de nossas vidas, seja inegociável. Nós estamos aqui e não daremos nenhum passo atrás.

E, por isso, através da Carta de Salvador por Direitos, Reparação e Justiça, elencamos eixos fundamentais pela defesa da vida, garantia de dignidade e promoção da paz.

  1. Outro modelo de Segurança

A política de drogas e de segurança pública seja em Salvador, Quito, Boston, Bogotá, Xamar, Montevideo e Praia aprisiona e assassina corpos negros. Não se trata de equívoco ou desvio, mas de projeto político que devemos barrar a partir do encontro e mobilização ativa e conjunta. Mas mais do que barrar, é preciso pensar um outro modelo baseado na mediação de conflitos, no desfinanciamento de tecnologias racistas, como do reconhecimento facial, e aparelhos de repressão e punição e na promoção do acesso à Justiça e aos direitos. Demandamos dignidade, equidade, respeito à autonomia e liberdade.

  1. Justiça Reprodutiva

É de necessidade urgente pensar como a guerra às drogas e o racismo impactam nas maternidades e paternidades negras. E isso nos leva a refletir na quantidade de homens e mulheres negras e indígenas em idades reprodutivas encarcerados, e que são privados de exercerem vivências de forma plena. Os processos punitivos e repressivos trazem consequências diretas na saúde reprodutiva e no acesso à saúde de forma integral. As 110 mil crianças sem registro de paternidade, no Brasil, majoritariamente negras, indígenas, ribeirinhas e periféricas, são responsabilidade direta dessa guerra que determina não só o direito de viver, mas também o direito de nascer. 

O fortalecimento do SUS e a construção de modelos comunitários, coletivos e populares é demanda urgente! E  não apenas. Como rede global que somos, é necessária a luta para garantir uma saúde digna, pública, gratuita para todas, todes e todos e em diversos contextos e países. Viver, viver e viver!

  1. Reparação e Reconciliação

Queremos Reparação total e um projeto de promoção da paz baseado em nossas inteligências e ancestralidades. Ressignificar sem esquecer de onde viemos e para onde queremos caminhar e viver. Precisamos aprofundar as reflexões sobre reconciliação, sendo esta baseada na responsabilização do Estado e, com isso, a modificação nas relações sociais que possibilitem uma vida digna, justa e segura para todes, promovendo a reinvenção dos métodos de diálogo e atuação coletiva.

  1. Autocuidado Radical

Queremos pensar o autocuidado como direito ao bem-viver e à reparação. Nas palavras de Conceição Evaristo que nos norteiam: “a gente combinamos de não morrer”. Mas não queremos apenas sobreviver, queremos viver a vida plena. O autocuidado radical deve ser absorvido por nossas organizações como autopreservação, autodefesa, prática revolucionária e ato político. Não estamos inventando a roda. Estamos propondo a retomada de técnicas de nossos ancestrais, que pensem integralmente em nossa humanidade, garantindo necessidades e cuidados holísticos para saúde e vitalidade às nossas comunidades. O acúmulo do campo da redução de danos precisa articular-se aos saberes ancestrais que historicamente se organizam e produzem prevenção e outra forma de ver e viver o mundo. O descanso é um direito para corpos historicamente expropriados e explorados como força de trabalho em sistema no qual o lucro tem sido mais forte do que a vida. Nos negamos a isso. E usaremos da ginga como tecnologia contra-colonial para reinvenção do mundo.

  1. Comunicação de Causas

Os meios de comunicação têm um papel importante para combatermos o atual modelo de guerra às drogas. Ao reproduzir esteréotipos, veículos de mídia dão sustentação ao terrorismo de Estado que estigmatiza e corrobora o massacre de nossos corpos. É preciso disputar e reverter essa prática e modelo. As mídias alternativas, marginais e periféricas são os espaços que devemos privilegiar e fortalecer nessa disputa narrativa contra-colonial. 

O audiovisual tem caráter educativo e, portanto, responsabilidades que precisam ser consideradas. A imprensa deve ser instada a se engajar no mapeamento de profissionais, na sensibilização do ambiente para a pauta e na promoção de equipes que espelham a diversidade da sociedade. Queremos uma comunicação pautada na afetividade e na humanidade. 

Nossas formulações não terminam por aqui. Durante 3 dias, nos reunimos para analisar o cenário político nas Américas e no Mundo pela perspectiva do Sul Global. Durante 3 dias pensamos e repensamos estratégias, nos abraçamos, conversamos, trocamos e nos cuidamos. Durante 3 dias, fizemos do encontro uma pulsão de força e de autopreservação e de recuperação. E isso é um ato de guerra por compreendermos quem são os nossos inimigos. Uma outra política sobre drogas é uma emergência por nossas vidas, dos nossos de agora e dos que virão. E não arredaremos o pé. Somos “começo, meio e começo” – Salve Nego Bispo! Daqui para frente, em marcha, sempre.  Axé!

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