Salvador teve pelo menos 85 episódios de interrupção total ou parcial da circulação de ônibus devido a eventos ligados à segurança pública, entre 4 de agosto de 2023 e 15 de agosto de 2024. É o que revela o levantamento inédito Catraca Racial: o impacto da segurança pública na mobilidade urbana da capital da Bahia, produzido em parceria pela Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, pelo Observatório da Mobilidade de Salvador e pelo Instituto Fogo Cruzado. Nele, foram analisadas informações levantadas pela Rede de Observatórios da Segurança e Fogo Cruzado, e comparadas a registros disponibilizados pela Prefeitura de Salvador, através de pedido de Lei de Acesso à Informação (LAI) e pelo Sindicato dos Rodoviários.
O levantamento evidencia o impacto da segurança pública na mobilidade urbana da capital da Bahia, em que os eventos observados correspondem a ataques ou conflitos entre grupos armados, incluindo operações policiais. Consequência disso foram problemas para a livre circulação da população soteropolitana nesses 12 meses. O bairro de Mussurunga foi o mais impactado. Por 14 vezes ao longo do ano, a frota de ônibus teve interrupção total ou parcial, sendo que, durante o último mês de maio, os moradores da região ficaram sete dias seguidos sem ônibus, na interrupção mais longa registrada no período.
Além de Mussurunga, os bairros mais afetados pela interrupção no transporte em decorrência de tiroteios foram Fazenda Coutos e Valéria (com oito episódios cada), Pernambués (seis), Águas Claras (cinco), Nordeste de Amaralina e Engenheiro Velho da Federação (quatro cada), Beiru/ Tancredo Neves e Mirantes de Periperi (três cada), Boa Vista de São Caetano, Santa Cruz, Santa Mônica, Narandiba, Pirajá, Engomadeira e IAPI (dois cada), e um episódio registrado em cada um destes bairros: Alto das Pombas, Fazenda Grande do Retiro, São Caetano, Conjunto Pirajá, Paripe, Periperi, Capelinha, Castelo Branco, São João do Cabrito/Plataforma, Barragem de Ipitanga, San Martin, Ilha Amarela, Jardim Nova Esperança, Barreiras, Cajazeiras e Arenoso.
Moradores pretos e pardos formam maioria em 30 bairros da capital baiana afetados pelas 85 interrupções no transporte público do período, revela o estudo. “A população negra e periférica de Salvador hoje sofre até para permanecer em suas comunidades, devido aos conflitos recorrentes produzidos por um modelo violento de segurança pública. Mas também sofre se precisa deixar a sua moradia para acessar direitos em outras áreas da cidade. Se não há mobilidade urbana, compromete-se o direito à saúde, à educação, à geração de renda e ao lazer. É como se o Estado construísse uma catraca racial não visível a todos os olhos, mas que define quem, quando e pra onde, pode se mover na cidade de Salvador”, comenta Dudu Ribeiro, historiador e diretor executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, e um dos responsáveis pelo levantamento.
Ao todo foram 316 horas de interrupção no transporte público registradas em 15 dos 85 episódios levantados pelo estudo, o equivalente a 13 dias sem acesso à mobilidade urbana, com repercussões negativas também em ausências no emprego e impossibilidade de obter serviços/consultas agendados, entre outros problemas.
Para Daniel Caribé, doutor em urbanismo e membro do Observatório da Mobilidade de Salvador, “a suspensão temporária do serviço de transporte público por conta de conflitos armados em bairros populares e negros de Salvador também tem que ser vista como um problema de mobilidade urbana, pois a imobilidade urbana temporária ou obriga as pessoas a caminharem distâncias mais longas para ter acesso ao serviço ou ao emprego, se estes continuam funcionando em bairros próximos. Outros, sem alternativa, recorrem ao transporte irregular, aos mototáxis ou aos aplicativos. Tudo isso corrói a renda dessa população já vulnerável, rouba-lhe tempo de vida e tira o acesso a outros direitos, como educação, saúde, lazer e trabalho”.
A prefeitura de Salvador não informa os casos de interrupção de mobilidade urbana ocorridos durante operações policiais, mas a base de registros do Fogo Cruzado mostra que 19 eventos estiveram associados a ações policiais — outros 57 episódios aconteceram em diferentes contextos da segurança pública e apenas 9 situações não se relacionaram a alguma intervenção da polícia.
“A mobilidade precária e a violência urbana são problemas históricos para a população mais pobre de Salvador. Quando a violência armada interfere de forma tão direta na oferta de um serviço fundamental como o transporte público, é porque há algo muito errado na política de segurança e isso não deve ser tomado como algo natural. Por isso, os dados revelados por este levantamento são fundamentais para o poder público visualizar o cenário por suas evidências e tome para si a responsabilidade de garantir um direito que é básico”, avalia a coordenadora do Instituto Fogo Cruzado na Bahia, Tailane Muniz.
Quando questionada sobre qual é o protocolo adotado para decidir pela interrupção dos serviços de transporte público em áreas afetadas por tiroteios, a Prefeitura Municipal de Salvador respondeu da seguinte forma: “Quando há ameaça iminente de vandalismo,‘queima’ de ônibus, que comprometam a segurança dos passageiros e operadores do sistema por parte das facções criminosas ou qualquer tipo de manifestação nas localidades da cidade de Salvador, a Cofat (Coordenadoria de Fiscalização e Administração de Transporte) acompanha e autoriza a suspensão do atendimento do transporte público via solicitação por parte das empresas de ônibus e do sindicato dos rodoviários do sistema Integra, nas localidades afetadas, retomando logo que exista por meio dos entes da segurança pública validação e certeza de retorno da normalidade da operação”.
As organizações responsáveis pelo levantamento também questionaram se existe alguma política ou plano específico para garantir a continuidade dos serviços de transporte público em áreas afetadas por violência urbana. A Prefeitura explicou que “existe uma minuta de criação do comitê de crise, sugerida pela Cofat, já encaminhada para DIT e Gabinete (GAB) desta Secretaria de Mobilidade Urbana (Semob), sugerindo a participação de representantes de Semob, Integra, Sindicato dos Rodoviários e Secretaria de Segurança Pública (Polícia Militar e Polícia Civil), onde prevê a busca de soluções para garantia da continuidade dos serviços de transporte público em áreas afetadas por violência urbana”.
O levantamento completo estará disponível no site da Iniciativa Negra a partir de 11 de novembro em publicações.