Por Ana Míria Carinhana, coordenadora de pesquisa da Iniciativa Negra
Hoje a população negra brasileira sai às ruas pelo direito de viver. Há 133 anos de uma abolição inconclusa, a população brasileira enfrenta múltiplas faces da morte e exige dignidade e respeito diante da desigualdade, da fome, do atraso na vacinação contra a Covid, da falta de emprego, da insuficiência de políticas sociais, do genocídio diário perpetrado em nome de uma política de drogas falida que preza pela violência e pela dor, da ausência de reparação. O Brasil sedimentou o seu projeto de país sob hierarquias raciais e hoje as favelas reinventam as senzalas no que diz respeito à cor e ao Estado de exceção.
A combinação entre racismo, colonialismo e imperialismo, fundamentou um dos marcos sociais mais cruéis da nossa história, a escravização de negras e negros trazidos do continente africano e assimilados mediante torturas, estupros, assassinatos e uma série de outras violências. Desde então, nos empenhamos em um projeto de sobrevivência que vai desde o enfrentamento ao racismo científico e suas políticas eugenistas e de aniquilação manifesta, à desmistificação do racismo cultural ou das narrativas de meritocracia e de democracia racial que instituem diferenças hierárquicas raciais.
As condições de vida e de morte dos negros e brancos hoje no Brasil são muito diferentes. Os negros estão sub-representados nos espaços de poder e, em contrapartida, sobrerrepresentados nos espaços de estigmatização e vulnerabilidade. Considerando que 53% da população brasileira é negra, apresento-lhes alguns dados desmembrados racialmente para nos ajudar a observar a desigualdade na distribuição da morte e da violência no Brasil com relação às pessoas negras e não negras.
De acordo com o Atlas da Violência (2020, p. 47) os negros representam 75,7% das vítimas de homicídios no país; as mulheres negras representam 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando comparada à das mulheres não negras.
O Anuário de Segurança Pública (2020) também nos informa a sobrerrepresentação de negros entre as vítimas de letalidade policial, correspondendo a 74,4% do total de vítimas entre os civis e a 65,1% dos agentes de segurança assassinados no último ano. O estudo demonstra que: “A comparação da taxa por 100 mil habitantes indica que a mortalidade entre pessoas negras em decorrência de intervenções policiais é 183,2% superior à taxa verificada entre brancos. Enquanto entre brancos a taxa fica em 1,5 por 100 mil habitantes brancos, entre negros é de 4,2 por 100 mil negros”. (Anuário de Segurança Pública, 2020, p. 90-91).
No que diz respeito à violência contra as mulheres, o Anuário de Segurança Pública (2020) nos informa que “Em 2019, 66,6% das vítimas de feminicídio no Brasil eram negras”. As mulheres negras correspondem a 53,6% das vítimas de mortalidade materna (SIM/Ministério da Saúde/2015) e a 65,9% das vítimas de violência obstétrica (Cadernos de Saúde Pública 30, 2014, Fiocruz). A mesma instituição observa que as mulheres negras correspondem a 68,8% das mulheres mortas por agressão (Diagnóstico dos homicídios no Brasil – Ministério da Justiça/2015) e também concluem que as mulheres negras têm duas vezes mais chances de serem assassinadas que as brancas. Destacam também a desproporção no que diz respeito à taxa de homicídios por agressão com relação às mulheres brancas e negras: 3,2/100 mil entre brancas e 7,2 entre negras (Diagnóstico dos homicídios no Brasil. Ministério da Justiça/2015).
No que diz respeito ao encarceramento, o Brasil é, atualmente, o país com a terceira maior população carcerária do mundo, possuindo, em 2020, mais de 773 mil pessoas presas (INFOPEN), ficando atrás apenas dos Estados Unidos e China, respectivamente com 2,1 milhões e 1,7 milhão (ICPR – Institute for Crime & Justice Research). Ao longo dos últimos 16 anos o número de mulheres presas no Brasil cresceu mais de 600%. Observa-se ainda que, enquanto 25% dos crimes pelos quais os homens respondem estão relacionados ao tráfico, para as mulheres essa proporção chega a 62%. Segundo o Infopen Mulheres (2016), 62,5% da população carcerária feminina no Brasil é composta por mulheres negras, a maior parte delas possui o ensino fundamental incompleto. O relatório de informações penitenciárias do Brasil (INFOPEN, 2017, p. 32) nos informa que a população negra corresponde a aproximadamente 64% da população carcerária. Nesse sentido, é importante também observar que, em 2019, o INFOPEN informou que existem 268.438 presos provisórios nas penitenciárias do Brasil, o que significa dizer que 34,7% da população carcerária nacional sequer foi condenada em primeira instância (INFOPEN, 2019).
Precisamos desnaturalizar a apreensão desses dados e compreender que o enfrentamento ao racismo não é um dever exclusivo dos negros e negras e que este é um problema social que precisa ser amplamente discutido, sem demagogias, sem tabus, no âmbito sociocultural, político, econômico, familiar, afetivo, de saúde, de segurança pública, etc. Não é possível pensar no desenvolvimento do Brasil sem pensar o enfrentamento ao racismo em todas as suas dimensões; nos modos como ele estrutura a nossa sociedade e em todas as consequências maléficas que ele nos traz.
O racismo vai muito além de “considerar” ou “não considerar” uma ação como preconceituosa e está longe de ser uma compreensão “subjetiva” e “individual” de uma situação pontual. O requinte ideológico, prático e discursivo do racismo performa efeitos materiais concretos em nossa realidade influenciando diretamente na diferenciação de um “parceiro”, de um “empregado”, de uma “pessoa com boa aparência”, de um “chefe”, de um “líder”, de um “intelectual”, de um “sujeito de bem”, de um “marginal que merece morrer”.
Em nossa sociedade, o descrédito, a desvalorização e a estigmatização das características fenotípicas e culturais relacionadas à “negritude” como: cor da pele, cabelo, traços físicos, costumes culturais e religiosos, etc… estão em contraste permanente com o enaltecimento das características da “branquitude”.
Não é mais possível naturalizar isto. Ao contrário, precisamos nos interrogar sobre os modos como o racismo permeia as relações sociais cotidianas interpessoais, institucionais e estruturais. Admitir a existência do racismo e engajar-se em seu enfrentamento diário é responsabilidade de todos.
Para aqueles que se pretendem antirracistas, interroguem os dados, as instituições, as estruturas, treinem o olhar, se posicionem ideologicamente, cuidem, protejam, amem, se responsabilizem e busquem a responsabilização das pessoas e instituições públicas e privadas; participem e estimulem a promoção de políticas públicas relacionadas aos diferentes âmbitos da vida (saúde, segurança pública, educação…); e sobretudo a partir da ressignificação e mudança de posturas individuais e coletivas, de modo a atingir as estruturas de produção e reprodução do racismo em nossa sociedade.
Hoje nós gritamos contra todo o tipo de violência e opressão, sobretudo as que perduram. Hoje nós reconhecemos a memória de enfrentamento ao racismo e toda a luta em prol da equidade racial no Brasil. Ainda não estamos caminhando como gostaríamos, mas estamos construindo um caminho pautado na resistência, na construção coletiva e no fortalecimento de um povo que quer viver com dignidade! Qual o seu papel nisso tudo?